A escola e o museu, o recalque e o fantasma
No final do século XIX, com a proclamação da República, a antiga Província de Minas Gerais se viu tomada pela busca de modernização e de rompimento com seu passado colonial e monárquico. Para isso, era preciso uma nova Capital. Ouro Preto, a velha Vila Rica, construiu-se de modo desordenado sob o ritmo da exploração do ouro, a partir do final do século XVII, entre montanhas, nuvens, frio, pedra e mofo, seguindo o padrão colonial de ocupação em torno de um caminho, mais tarde a rua “direita”.
Para os novos padrões higienistas e atendendo a um novo gosto e a uma busca de organização racional e hierárquica do espaço, que manifestasse o poder e sua desigual distribuição, surgiu Belo Horizonte, a nova e planejada Capital.No alto de uma colina, erigiu-se o centro de poder e de administração do Estado em torno do Palácio da Liberdade e da praça de mesmo nome. Com os edifícios das secretarias de Estado, da Biblioteca Pública, da sede da Arquidiocese, de poucos prédios residenciais, dentre os quais se destaca o Edifício Niemeyer, a Praça se tornou, ao longo do tempo, uma mistura de estilos unificada pelos jardins e por suas palmeiras imperiais que caminham em direção ao Palácio.
Exemplos de arquitetura art-nouveau estão ao lado das linhas brancas, sensuais e sinuosas do modernismo brasileiro, de prédios de estilo eclético, do monolítico bloco art-deco da Cúria da Arquidiocese e da combinação de todas essas referências arquitetônicas, que as espelha, talvez como paródia, no edifício pós-moderno desenhado por Éolo
Na cidade sem mar ou ponto de referência marcante, os novos habitantes sabem bem onde estão em relação a ela.É nessa Praça que foi construído o prédio que, durante anos, abrigou a Secretaria de Estado da Educação e, posteriormente, a partir de 1994, o Centro de Referência do Professor (Cerp) e o Museu da Escola, criados nesse ano.Inspirado no Musée National de L'Éducation de Rouen, na França, o Museu da Escola foi montado a partir de doações de acervos pessoais e de escolas, e constitui um dos raros museus dedicados à escola na América Latina. Abriga uma reserva técnica e reconstituições de antigas salas de aula que guardam a memória da educação pública e republicana do Estado, com ênfase na prática diária, cotidiana, do professor e de seus alunos. Seu acervo, tombado pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico (Iepha-MG), é composto por cerca de cinco mil peças, entre mobiliário, objetos escolares, cartilhas e fotografias, que datam do século XIX e primeira metade do século XX.Esse patrimônio encontra-se agora seriamente ameaçado. O Governo do Estado decidiu transferir o centro administrativo para a região norte da cidade, num novo conjunto a ser ainda construído. A Praça deverá se transformar num circuito cultural, abrigando a sede da Orquestra Sinfônica do Estado e diferentes espaços educativos e culturais, em parceria com a iniciativa privada.Mas não o Museu da Escola, nem o Cerp. Não há mais lugar para a escola pública republicana na Praça.O prédio está sendo desocupado. O Cerp foi transferido para um bairro próximo, de um antigo órgão da Secretaria voltado para a construção de escolas e de equipamentos escolares. O Museu da Escola irá para o Instituto de Educação de Minas Gerais, antigo prédio da Escola Normal. Uma sala de exposição provisória já foi montada em seu salão nobre. Segundo fontes oficiais, o Museu será reaberto quando a Universidade do Estado de Minas Gerais, que ocupa parte do complexo, tiver sua sede transferida para outro local, mas não se sabe quando. O acervo, ao que parece, encontra-se encaixotado sem os devidos cuidados técnicos para sua conservação. ",1]
Maia.Para os belo-horizontinos, para aqueles que a cidade adotou, de passagem ou de definitivo, a Praça e seu conjunto é um marco geográfico e identitário.
Na cidade sem mar ou ponto de referência marcante, os novos habitantes sabem bem onde estão em relação a ela.É nessa Praça que foi construído o prédio que, durante anos, abrigou a Secretaria de Estado da Educação e, posteriormente, a partir de 1994, o Centro de Referência do Professor (Cerp) e o Museu da Escola, criados nesse ano.Inspirado no Musée National de L'Éducation de Rouen, na França, o Museu da Escola foi montado a partir de doações de acervos pessoais e de escolas, e constitui um dos raros museus dedicados à escola na América Latina. Abriga uma reserva técnica e reconstituições de antigas salas de aula que guardam a memória da educação pública e republicana do Estado, com ênfase na prática diária, cotidiana, do professor e de seus alunos.
Seu acervo, tombado pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico (Iepha-MG), é composto por cerca de cinco mil peças, entre mobiliário, objetos escolares, cartilhas e fotografias, que datam do século XIX e primeira metade do século XX.Esse patrimônio encontra-se agora seriamente ameaçado. O Governo do Estado decidiu transferir o centro administrativo para a região norte da cidade, num novo conjunto a ser ainda construído.
A Praça deverá se transformar num circuito cultural, abrigando a sede da Orquestra Sinfônica do Estado e diferentes espaços educativos e culturais, em parceria com a iniciativa privada.Mas não o Museu da Escola, nem o Cerp. Não há mais lugar para a escola pública republicana na Praça.O prédio está sendo desocupado. O Cerp foi transferido para um bairro próximo, de um antigo órgão da Secretaria voltado para a construção de escolas e de equipamentos escolares.
O Museu da Escola irá para o Instituto de Educação de Minas Gerais, antigo prédio da Escola Normal. Uma sala de exposição provisória já foi montada em seu salão nobre. Segundo fontes oficiais, o Museu será reaberto quando a Universidade do Estado de Minas Gerais, que ocupa parte do complexo, tiver sua sede transferida para outro local, mas não se sabe quando. O acervo, ao que parece, encontra-se encaixotado sem os devidos cuidados técnicos para sua conservação.
Não se sabe exatamente onde está. As secretarias de estado da Educação e da Cultura, esta última responsável pela implementação do circuito cultural, não dão maiores informações. Quando se pronunciam, o fazem laconicamente: trata-se de uma decisão do Governo do Estado.Ao que tudo indica, é uma decisão é irreversível, esse eufemismo para o adjetivo “autoritário”. A escola não vai ao Museu. Talvez porque, ao contrário de museus de arte e outros museus históricos, o da Escola representa uma história que se prolonga, ainda hoje, e que se prolonga como um problema. Melhor recalcá-lo, já que – museu representativo dos ideais republicanos de uma escola para educação do povo – sua presença incomoda pelo seu testemunho do que não se efetivou, daquilo que não se construiu, de um ideal ainda muito distante da realidade. O Museu testemunha um fracasso.Pode ser que a Secretaria de Cultura prefira se ocupar da Cultura com C maiúsculo: aquela corporificada nas artes de maior visibilidade, na projeção de um novo ideal de cultura (e de educação, essa palavra sempre escondida nos monumentos, mesmo os documentais, como os museus), esquecendo-se de que a escola é, por excelência, o lugar de um fenômeno elementar da cultura: o da contínua elaboração e transmissão de uma cultura comum a novas gerações. Pode ser ainda que a Secretaria de Cultura prefira se ocupar daquilo que já está morto. A escola não morreu e sobrevive como um incômodo fantasma: está distante do sonho republicano de uma educação universal e pública. Melhor mesmo escondê-la no Salão Nobre do Instituto de Educação, outro ideal fracassado. As artes do fazer escolar, seus objetos, suas fotografias e livros, os depoimentos de antigos professores talvez não tenham, para a Secretaria de Cultura, o mesmo valor exótico, o mesmo apelo ao fetiche dos ofícios mortos do recém-inaugurado e belo Museu de Artes e Ofícios. O sonho republicano, sem o apelo dos relicários, parece coisa de somenos. Está vivo ainda. Melhor tirá-lo da Praça e recalcá-lo nos porões da antiga Escola Normal. ",1]
Não se sabe exatamente onde está. As secretarias de estado da Educação e da Cultura, esta última responsável pela implementação do circuito cultural, não dão maiores informações. Quando se pronunciam, o fazem laconicamente: trata-se de uma decisão do Governo do Estado.Ao que tudo indica, é uma decisão é irreversível, esse eufemismo para o adjetivo “autoritário”.
A escola não vai ao Museu. Talvez porque, ao contrário de museus de arte e outros museus históricos, o da Escola representa uma história que se prolonga, ainda hoje, e que se prolonga como um problema. Melhor recalcá-lo, já que – museu representativo dos ideais republicanos de uma escola para educação do povo – sua presença incomoda pelo seu testemunho do que não se efetivou, daquilo que não se construiu, de um ideal ainda muito distante da realidade. O Museu testemunha um fracasso.Pode ser que a Secretaria de Cultura prefira se ocupar da Cultura com C maiúsculo: aquela corporificada nas artes de maior visibilidade, na projeção de um novo ideal de cultura (e de educação, essa palavra sempre escondida nos monumentos, mesmo os documentais, como os museus), esquecendo-se de que a escola é, por excelência, o lugar de um fenômeno elementar da cultura: o da contínua elaboração e transmissão de uma cultura comum a novas gerações.
Pode ser ainda que a Secretaria de Cultura prefira se ocupar daquilo que já está morto. A escola não morreu e sobrevive como um incômodo fantasma: está distante do sonho republicano de uma educação universal e pública. Melhor mesmo escondê-la no Salão Nobre do Instituto de Educação, outro ideal fracassado. As artes do fazer escolar, seus objetos, suas fotografias e livros, os depoimentos de antigos professores talvez não tenham, para a Secretaria de Cultura, o mesmo valor exótico, o mesmo apelo ao fetiche dos ofícios mortos do recém-inaugurado e belo Museu de Artes e Ofícios.
O sonho republicano, sem o apelo dos relicários, parece coisa de somenos. Está vivo ainda. Melhor tirá-lo da Praça e recalcá-lo nos porões da antiga Escola Normal.
A quem poderia interessa Lili, a personagem de uma cartilha que introduziu gerações e gerações de crianças no mundo da escrita, que iam esperar a chegada de seu primeiro livro nas estações de ferro de uma antiga geografia mineira? A quem poderia interessar o caderno Avante!, com seu patriotismo e apelo à defesa da Pátria, escrita com P maiúsculo? A quem poderia interessar as memórias dos professores, de seu ofício, de seus fazeres, de sua arte de ensinar? As carteiras para dois alunos, seu tampo que se levanta, suas pernas de ferro moldadas pela Usina Esperança ou pela Usina Wigg, em Itabirito, o buraco do tinteiro, as reentrâncias para os lápis e as canetas, a mão que deseja acariciar os riscos talhados a canivetes, camadas sobre camadas de uma história a ser ainda contada, a ser ainda conhecida e pesquisada?É estranho como a escola se marca na memória das pessoas comuns: eu me lembro sempre de cenas como as de Amarcord, de Fellini. Não exatamente do que se aprendia, mas do olhar crítico e zombeteiro dos alunos diante do autoritarismo, às vezes (quase sempre, vá lá) do ridículo dos professores, da camaradagem e da rivalidade entre os colegas, das fugas para tocar punheta, para passear a sem rumo, para sentir o ar das manhãs sempre perdidas nas salas. Se foi assim com Fellini, é assim com a mais contida dona-de-casa. Alguns antigos esquemas retóricos sugeriam que se organizasse o discurso como uma casa: ela serviria de apoio à memória. Como esses antigos preceitos retóricos, a entrada no Museu da Escola de um novo visitante era quase sempre acompanhado de um grito, de um susto, de uma mão ao peito: de surpresa diante da casa toda – de toda a escola e uma vida – que um simples objeto sem valor, achado em sebos, descartados por bibliotecas, fazia trazer do passado. O professor de grego que tenta manter a cinza do cigarro intacta, a professora de matemática com peitos como chifres, a crueldade cometida contra um colega mais indefeso, o medo do mais forte, o uniforme, o livro, a letra, o único verso que ficou do poema. ",1]
A quem poderia interessa Lili, a personagem de uma cartilha que introduziu gerações e gerações de crianças no mundo da escrita, que iam esperar a chegada de seu primeiro livro nas estações de ferro de uma antiga geografia mineira?
A quem poderia interessar o caderno Avante!, com seu patriotismo e apelo à defesa da Pátria, escrita com P maiúsculo? A quem poderia interessar as memórias dos professores, de seu ofício, de seus fazeres, de sua arte de ensinar? As carteiras para dois alunos, seu tampo que se levanta, suas pernas de ferro moldadas pela Usina Esperança ou pela Usina Wigg, em Itabirito, o buraco do tinteiro, as reentrâncias para os lápis e as canetas, a mão que deseja acariciar os riscos talhados a canivetes, camadas sobre camadas de uma história a ser ainda contada, a ser ainda conhecida e pesquisada?
É estranho como a escola se marca na memória das pessoas comuns: eu me lembro sempre de cenas como as de Amarcord, de Fellini. Não exatamente do que se aprendia, mas do olhar crítico e zombeteiro dos alunos diante do autoritarismo, às vezes (quase sempre, vá lá) do ridículo dos professores, da camaradagem e da rivalidade entre os colegas, das fugas para tocar punheta, para passear a sem rumo, para sentir o ar das manhãs sempre perdidas nas salas. Se foi assim com Fellini, é assim com a mais contida dona-de-casa.
Alguns antigos esquemas retóricos sugeriam que se organizasse o discurso como uma casa: ela serviria de apoio à memória. Como esses antigos preceitos retóricos, a entrada no Museu da Escola de um novo visitante era quase sempre acompanhado de um grito, de um susto, de uma mão ao peito: de surpresa diante da casa toda – de toda a escola e uma vida – que um simples objeto sem valor, achado em sebos, descartados por bibliotecas, fazia trazer do passado. O professor de grego que tenta manter a cinza do cigarro intacta, a professora de matemática com peitos como chifres, a crueldade cometida contra um colega mais indefeso, o medo do mais forte, o uniforme, o livro, a letra, o único verso que ficou do poema.
No caso dos professores, dos antigos professores, o caderno de plano de aulas despertava sempre o indicador cheios de nós em direção à vitrine: eu fazia assim; aqui eu mudava, isto não dava certo, dispersava os alunos, ah, como custei a conseguir a vaga, naquela escola distante, a mãe pedindo a intercessão do prefeito, do vereador, do deputado.Mais que objetos, além que monumentos fracassados de um ideal incômodo que fica preso a nossas mãos, sem saber onde colocá-lo, o Museu da Escola era, poderia ser, poderia tornar-se um museu também dessa cultura que não se toca, desse universo de fazeres cotidianos e saberes, de modos de exercer ofícios – o de aluno; o do professor.Este texto é para lembrar que o ideal de uma escola republicana ainda vive. É nossa forma de não deixar esquecer que aqueles objetos, aqueles materiais efêmeros e sem prestígio – os cadernos, as lousas, o giz, o mapa, o cartaz, a cartilha, o livro, a cadeira, a pena, o tinteiro, o lápis – permitem reconstituir um mundo – aquele que não se toca, imaterial, já que incorporado nas mentes e nos corpos dos que estudamos: uma cultura – a da escola e de sua inserção no espaço social mais amplo. Este texto é para fazer lembrar que essa cultura e suas conflituosas relações com o mundo social ainda se prolonga nas desigualdades de nossa escola contemporânea. Para não deixar esquecer que essa instituição não resolveu ainda suas dificuldades para, de fato, contribuir para a transmissão cultural e para a re-elaboração de uma cultura cada vez mais marcada pela diversidade, tornando-a patrimônio de todos. Para lembrar que só assim, pela ação pedagógica da escola, podem ser incorporados os princípios de apreciação ética e estética necessários para transitar pelas mais diferentes esferas de produção cultural (inclusive os belos museus mantidos pela Secretaria de Cultura). Este texto é para não deixar esquecer, aos responsáveis por esse ato – para o qual não encontro outras palavras senão ignorância e barbárie – que o recalcado sempre volta, sempre volta como ameaça e como fantasma. Como aquelas professoras e aqueles alunos que, na antiga fotografia, olham-nos fixamente do passado.",1]
No caso dos professores, dos antigos professores, o caderno de plano de aulas despertava sempre o indicador cheios de nós em direção à vitrine: eu fazia assim; aqui eu mudava, isto não dava certo, dispersava os alunos, ah, como custei a conseguir a vaga, naquela escola distante, a mãe pedindo a intercessão do prefeito, do vereador, do deputado.Mais que objetos, além que monumentos fracassados de um ideal incômodo que fica preso a nossas mãos, sem saber onde colocá-lo, o Museu da Escola era, poderia ser, poderia tornar-se um museu também dessa cultura que não se toca, desse universo de fazeres cotidianos e saberes, de modos de exercer ofícios – o de aluno; o do professor.
Este texto é para lembrar que o ideal de uma escola republicana ainda vive. É nossa forma de não deixar esquecer que aqueles objetos, aqueles materiais efêmeros e sem prestígio – os cadernos, as lousas, o giz, o mapa, o cartaz, a cartilha, o livro, a cadeira, a pena, o tinteiro, o lápis – permitem reconstituir um mundo – aquele que não se toca, imaterial, já que incorporado nas mentes e nos corpos dos que estudamos: uma cultura – a da escola e de sua inserção no espaço social mais amplo. Este texto é para fazer lembrar que essa cultura e suas conflituosas relações com o mundo social ainda se prolonga nas desigualdades de nossa escola contemporânea.
Para não deixar esquecer que essa instituição não resolveu ainda suas dificuldades para, de fato, contribuir para a transmissão cultural e para a re-elaboração de uma cultura cada vez mais marcada pela diversidade, tornando-a patrimônio de todos. Para lembrar que só assim, pela ação pedagógica da escola, podem ser incorporados os princípios de apreciação ética e estética necessários para transitar pelas mais diferentes esferas de produção cultural (inclusive os belos museus mantidos pela Secretaria de Cultura). Este texto é para não deixar esquecer, aos responsáveis por esse ato – para o qual não encontro outras palavras senão ignorância e barbárie – que o recalcado sempre volta, sempre volta como ameaça e como fantasma. Como aquelas professoras e aqueles alunos que, na antiga fotografia, olham-nos fixamente do passado.